Limites e funções da crítica de arte

por  Letícia de Melo

Nas últimas semanas  partilhamos o texto da crítica Avelina Lésper e tivemos mais de 60 mil visitantes em apenas algumas horas, além de dezenas de comentários no blog. Os argumentos de Avelina, que muitos discordam e muitos concordam, levam-nos às origens da crítica de arte.

Por que será que a reflexão de Avelina movimenta tanto os ânimos? Por que será que a primeira postura de artistas e profissionais ligados à arte, que defendem intensamente a liberdade criativa, e a liberdade vale para ambos os lados das opiniões, é chamá-la de reacionária?  Por outro lado, será que assumir passivamente as suas opiniões, como verdades absolutas, pode representar um benefício para a arte contemporânea?

A verdade é que as linhas inflamadas e repletas de parcialidade de Avelina geraram uma interacção sem limites. Independente do juízo de valor  acerca do que ela defendeu, é certo que existe uma confusão entre opinião e crítica e consideramos importante aprofundar alguns pontos.

Limites e funções da crítica de arte

A palavra crítica deriva do grego: kritikē (κριτική) e significa “ a arte de discernir”.  O seu portador deve ser capaz de discernir o valor das pessoas, coisas e conceitos e formular um juízo de valor. De todas estas possibilidades advém a sua grande actividade que é julgar; através do julgamento ele constrói a sua crítica. O objecto de estudo da crítica de arte é o mecanismo de juízo perante as obras.

Um crítico não existe para explicar um trabalho de arte, mas sim para dar uma opinião em cima das teorias que estudou e de posições que valoriza. A crítica lida também com o conceito de imparcialidade, que significa não defender um lado ou outro de um determinado assunto. Se os seus argumentos defendem posicionamentos políticos ou editoriais, é uma questão de escolha pessoal ou, ainda, de ética profissional.

Mas vamos voltar um pouco no tempo e rever as origens da crítica de arte…

Uma crítica fraca é reflexo da nossa sociedade? Estaremos fracos, cansados  e queremos apenas palavras amenas? 

Justamente por estes supostos interesses editoriais e políticos, há quem defenda que a crítica de arte já não existe mais. Boa parte das críticas contemporâneas centram-se muito mais em atribuir de 1 a 5 estrelas para uma exposição ou obra do que propriamente para apresentar argumentos relacionados a ela.

Em outra ponta está o leitor, que recebe críticas que concorda com aplausos ou, aquelas que discorda, prefere acusar o crítico de desentendido do assunto. Resta pouco, ou quase nenhum, espaço para o diálogo. Para uma troca bem fundamentada de argumentos coerentes.

Uma crítica não deve ser covarde ou retórica, repleta de juízos comuns ou meias palavras. É construída por uma análise sistemática de conceitos, para servir e informar a sociedade acerca do que está a ser feito e trazer à luz visões plurais acerca da importância que aquela obra ou artista tem no momento histórico em que este acontece. Para analisar a obra artística é necessário sempre contextualizá-la, no seu tempo e período. Como muitos trabalhos também precisam de tempo para serem compreendidos,  na crítica contemporânea o estudo de um conjunto de obras é mais rigoroso do que a análise de apenas uma obra.

“Não se tem que simpatizar minimamente com a existência da coisa, mas pelo contrário ser a esse respeito completamente indiferente, para em matéria de gosto desempenhar o papel de juiz”. (Kant, Crítica da Faculdade do Juízo).

Honoré Daumier, Salon ,1859 Lithografia

Honoré Daumier, Salon ,1859 Lithografia

O Crítico e  o  Historiador

Há quem defenda que os críticos devem escrever sobre o presente e aos historiadores cabe o passado, mas o mais adequado não é uma separação tão abrupta entre estas duas disciplinas que nasceram no século XVIII.

A crítica de arte surgiu como a conhecemos com o iluminista Denis Diderot (1713 – 1784), e suas críticas aos salons franceses; já a História da Arte surge com Winckelmann (1717 – 1768), embora seu estudo como disciplina académica e autónoma só é firmado em meados do século XIX em Berlim.

Segundo o historiador e crítico de arte Lionelo Venturi (1881- 1961), a história da arte necessita ter uma consciência e experiência da natureza da arte para saber que uma pintura é uma obra de arte e não um facto económico, por exemplo.  Já o crítico precisa da história da arte para a enquadrar a actividade do autor, para a analisá-la como uma tendência afim ou oposta ao seu tempo.

Giulio Carlo Argan (1909 – 1992), historiador e teórico de arte italiano, defendia a crítica de arte como disciplina autónoma, não sendo uma actividade secundária ou auxiliar à própria arte.

Tanto a história de arte, quanto a crítica de arte convergem para um único fim: a compreensão (e não confunda, aqui, compreensão com explicação) da obra de arte. Ambas associam as condições da obra de arte à possibilidade de sobre ela conduzir ao tão temido juízo de qualidade.

Sendo assim, qual o papel da Avelina e qual o papel dos críticos na arte contemporânea?

Partindo-se do princípio de que pode existir uma incomunicabilidade na arte, seja da parte de pessoas directamente ligadas a ela, seja do público em geral, a sua compreesão pode ser expandida ou mesmo complementada com a intervenção da crítica. Habita uma espécie de lacuna entre a obra artística e o  poder contemplativo do público que só teria a ganhar com a crítica amparada em análises profundas e bem fundamentadas, com temas nevrálgicos do contemporâneo, teorias de arte, história e acontecimentos pretéritos. Que se visse mais crítica e menos notícias sobre os feitos dos artistas, que apenas os colocam no mapa e não desenvolvem novos argumentos na história da arte contemporânea.

O crítico não tem o papel de destruidor de sentido, ou de enaltecedor cego dos méritos do artista. O seu papel é atuar como uma espécie de  mediador, que garanta um resultado interactivo mais pleno.

Se Avelina Lésper é reacionária ou visionária, não é o que está em discussão. O que merece respeito na sua crítica é a forma como ela ilumina certos temas não debatidos ou até mesmo consistentemente evitados no intrincado mercado da arte. É a sua tentativa de compreender os limites e a validade de um conceito e de uma incógnita, chamado arte contemporânea.

1 thoughts on “Limites e funções da crítica de arte

  1. Interessante e oportuno este bilhete em que voce coloca cada um no seu lugar : o critico, o historiador… e o artista.
    Tenho a impressao que falta uma disciplina : a filosofia da arte. Penso que filosofia, historia e critica sao disciplinas diferentes mesmo se, como voce diz, as fronteiras nao sao abruptas. Talvez seja o que voce, em algum ponto tratou de “teorico de arte”.

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